Conheça o processo de dublagem de um jogo para o Brasil

03/02/2014 08:56

A área de games da Campus Party 2014 trouxe boas novidades. No palco dedicado a jogos, Cristiano Prazeres e Fernando Werneck deram sua contribuição. Eles são produtores de áudio do estúdio brasileiro Maximal Studio e foram à Campus para dar a palestra “Do Jeitinho Brasileiro: Localização de Games”, específica sobre o processo de localização de áudio de games em território nacional.

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Fernando Werneck e Cristiano Prazeres explicam o processo de tradução de um game para o Brasil (Foto: TechTudo/Renato Bazan)Fernando Werneck e Cristiano Prazeres explicam o processo de tradução de um game para o Brasil (Foto: TechTudo/Renato Bazan)

Por causa da crise econômica que se abate sobre a Europa e a estabilização de ganhos no mercado americano, as produtoras de games estrangeiras passaram a enxergar o Brasil como mercado de expansão – daí o interesse renovado em agradar os consumidores daqui. Isso, em conjunto com a localização dos processos de produção de games dentro do Brasil, deu nova força à proposta de trazer games para o português verde e amarelo.

Fazendo o feijão com arroz

O processo em si começa apenas depois que o jogo teve a produção de seu script e parte da arte desenvolvida. As empresas brasileiras de dublagem fecham os contratos com as gigantes internacionais e recebem esse material das distribuidoras ainda durante o produção do game. Elas analisam os personagens e as falas, buscando os elementos essenciais em cada um e “abrasileirando” o diálogo para que soe natural aos ouvidos tupiniquins. Há também um cuidado com a análise do timbre de voz do ator original de cada personagem, pois algumas das falas secundárias – reações, gritos, suspiros – nem sempre são traduzidas.

A partir daí, os produtores de áudio fazem uma pré-seleção de atores que se encaixem nos parâmetros definidos – especialmente timbre de voz – e partem para o casting, convidando diversos artistas a interpretarem algumas falas dos personagens. Isso dura algumas semanas, até que todo o elenco esteja definido.

O passo seguinte é pôr a mão na massa, gravar linha por linha. Produções titânicas, como o recente Battlefield 4, podem levar semanas de trabalho ininterrupto até que a primeira versão de cada fala esteja pronta, e ainda é preciso considerar o equipamento: nem sempre o microfone comum é a melhor opção. Para jogos de esporte, por exemplo, os atores que atuam os jogadores em campo usam microfones em gruas, distantes de sua bocas, para simular a ressonância de um campo aberto. Os comentaristas, por outro lado, usam aqueles headphones gigantes para gravar suas falas, pois a acústica desse tipo de equipamento é facilmente perceptível.

Para tornar a experiência do game convincente, os atores precisam até mesmo simular as ações dos personagens enquanto gravam as falas, seja pulando, correndo ou se abaixando. “Um dos melhores profissionais brasileiros é o André Ramiro, que fez Battlefield 4 com a gente. Tinha uma cena em que o personagem dele arrombava uma porta com o pé, e ele quase quebrou a parede do estúdio enquanto refazíamos aquela fala”, explicou Werneck.

A edição de toda essa captação é um processo igualmente demorado, e pode levar também muitas semanas, pois é exigência da maioria dos estúdios que as sonoras tenham exatamente a mesma duração de onda que as originais, em fidelidade milimétrica. Cada passo, cada suspiro, cada fala tem um arquivo sonoro próprio que precisa ser normalizado, pois cabe à engine do jogo aplicar efeitos de ambiente sobre elas.

O ator André Ramiro interpretou o soldado Irish em Battlefield 4 (Foto: Reprodução/Paulo Vasconcellos)O ator André Ramiro interpretou o soldado Irish em Battlefield 4 (Foto: Reprodução/Paulo Vasconcellos)

Gravados e editados, os sons são enviados para os desenvolvedores do jogo, que gastarão um bom tempo analisando linha a linha do traduzido. As falas rejeitadas começam a voltar em pacotes para serem refeitos. Na maioria das vezes, o problema é de sincronização, e não de atuação, pois este é um critério de avaliação muito mais fácil, especialmente por ouvidos forasteiros. As regravações acontecem da mesma forma que as da primeira fase, geralmente com mais agilidade e mais cuidado. Com a segunda fase concluída, fica a cargo das desenvolvedoras colocar os arquivos de som e texto alterados dentro do jogo – a participação dos dubladores acaba aí.

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Problemas de tradução

Se, visto de longe, o processo parece mecânico, o dia a dia apresenta desafios muito mais humanos. O caso mais recorrente é o de traduções que não batem com o script original – um trabalho de tradutores, não dos estúdios, mas que frequentemente exige que o pessoal na mesa de som retrabalhe muitas linhas de texto que simplesmente não fazem sentido. “A gente não fez o Uncharted 3, mas tem uma linha que sempre me pega naquele jogo: tem um cara que, em algum momento, ao invés de falar Vamos pegar um atalho’, fala ‘Vamos atalhar’. Cara, isso não existe!”, Prazeres explicou ao TechTudo. A solução para esse problema acontece na última hora, quando o técnico ouve e decide que vai ter que mudar.

Outro caso comum é daquele estúdio ou profissional que, acostumado a trabalhar com a indústria cinematográfica, não leva em consideração que as falas nos games podem ser usadas em mais de uma situação. “Falta pesquisa na hora de traduzir, é visível. O texto que chega para nós tem muitos termos que não têm lugar naquele game. Se você está fazendo um jogo de corrida, por exemplo, vai ter que aprender a falar como um mecânico. O mesmo vale para qualquer gênero”, disse Werneck.

Gravações sem referências de áudio ou vídeo são também uma chateação, dessa vez para os atores, que não têm como saber a entonação e o timing de suas falas. É um caso comum na dublagem de games: os desenvolvedores mandam os scripts sem as cenas ou falas originais prontas, ou pelo menos esboçadas, forçando os atores de outros países a adivinharem como deveriam trabalhar. Só dois resultados são possíveis: ou a dublagem acabará sendo refeita, como foi o caso de Assassin’s Creed III, ou fica por isso mesmo, dando origem a todo tipo de aberração linguística.

Por fim, existe aquele caso incomum em que o script do jogo muda no meio do caminho, com os dubladores já tendo acesso ao material original. A confusão que nasce daí pode ser trágica, com falas localizadas que não batem com as cenas finais, até mesmo trechos do jogo sem tradução.

Cortina de ferro

É provável, no entanto, que o maior desafio da dublagem de games esteja colocado para quem deseja entrar nessa indústria – como é o caso de qualquer ramo de dublagem no Brasil. O corporativismo em torno da profissão é notável: para ter a chance de participar em uma audição em um estúdio relevante, o aspirante precisa conseguir sua certificação de curso em Artes Cênicas (conhecida como DRT) e, por cima disso, um certificado em um curso de dublagem, que pode durar mais seis meses. Por causa disso, o mercado de trabalho para dublagem brasileiro é muito reduzido.

Mesmo o trabalho em torno de cada projeto pode ser extremamente puxado, com os maiores clientes exigindo até seis meses de atenção de cada estúdio para um único jogo. A parte boa disso, especialmente com a proliferação de games em português que está acontecendo hoje, é que existirá trabalho de sobra para quem estiver no ramo – basta que ele se abra um pouco e aceite novos talentos.

 

fonte:techtudo