Software Público e o primeiro ciclo virtuoso de produção

20/04/2015 10:42
No decorrer do ano ano passado, após a publicação da notícia sobre o compartilhamento do código da nova versão do sistema de inventário CACIC, coordenado pelo Ministério do Planejamento, comecei a refletir a respeito do valor simbólico dessa ação de aparência singela[1]. Não é trivial revestir um ato encoberto pela simplicidade por uma importância parametralmente oposta. Entender o conceito do ciclo virtuoso pode me ajudar a defender a relevância da experiência do CACIC, que completa 10 anos em junho de 2015.
 
Alvin Toffler, no livro Riqueza Revolucionária, destaca que no futuro a riqueza será gerada de uma forma completamente diferente da atual. Ele mencionou que “vivemos em uma economia paralela, fascinante e inexplorada, em que preenchemos muitas de nossas necessidades vitais sem precisar pagar por isso”[2]. De acordo com Toffler, “é a combinação da economia focada em aspectos monetários - do dinheiro - e àquela focada em aspectos intangíveis - do conhecimento -, que forma o que chamaremos de Sistema de Riqueza”. O ciclo virtuoso da cadeia de produção e da economia fazem parte do Sistema de Riqueza defendido por Toffler.
 
A primeira decisão para explicar o conceito de ciclo virtuoso foi a de aguardar um ano para publicar este artigo. Essa decisão justificou-se pela intenção de acompanhar os efeitos e os desdobramentos da iniciativa governamental, que sempre precisa de um tempo mais longo para análise. A principal preocupação desse efeito suspensivo é que a discussão conceitual não sofresse o embargo de algum problema contratual, que poderia ser uma resultante natural de um processo de produção colaborativa, ou técnico, devido aos problemas de instalação de um novo sistema, ou seja, não queria contaminar uma análise do modelo de negócio por um problema de ordem contratual ou técnica.
 
Para a análise dos aspectos que compõem o ciclo virtuoso, será necessário invocar o começo do software público. Existem vários registros na internet sobre a importância do sistema de inventário CACIC para o modelo do software público[3] e alguns deles devem ser rememorados: trata-se do primeiro software de propriedade do governo federal que foi disponibilizado para sociedade com uma licença livre e compartilhado de acordo com as prerrogativas legais brasileiras. Cabe o ato pioneiro à Dataprev- Empresa de Tecnologia da Informação da Previdência Social, quando no ano de 2005 liberou o sistema publicamente para sociedade.
 
Já naquela época, a decisão da empresa em parceria com o Ministério do Planejamento, correspondia ao primeiro aspecto do ciclo virtuoso, pois um bem público (no caso um software), foi compartilhado em modelo de licença permissiva para toda sociedade, que assim pôde usufruir dessa solução e criar novas oportunidades na prestação de serviços. O CACIC parece trazer sorte para o modelo, pois justamente a partir da experiência desse "sábio índio" foi possível registrar também os primeiros resultados do ciclo virtuoso.
 
Embora a sociedade seja beneficiada de maneira geral com a liberação do software, o próprio governo também consegue usufruir do resultado da produção colaborativa. Com base nesse princípio desenvolve-se o segundo aspecto do ciclo. Um outro ente público, a Procuradoria Geral da Fazenda-PGFN, interessada no sistema CACIC, resolveu operacionalizar uma instalação do sistema para realizar o inventário do seu parque. Ao enfrentar algumas dificuldades técnicas e pela necessidade de customização da ferramenta, a instituição decidiu realizar uma contração de prestação de serviços no mercado, cujo processo foi encerrado no ano de 2011, momento em que o contrato foi assinado, exatamente seis anos depois que o CACIC foi disponibilizado no Portal do Software Público Brasileiro-SPB.
 
A decisão da Procuradoria inaugura um terceiro aspecto que é a de um órgão da Administração Direta procurar um prestador de serviço privado para acelerar o processo de desenvolvimento do software. Seria também algo comum se tal contratação não tivesse uma mudança contábil importante: não se tratava mais de um investimento para Administração Pública, mas de um serviço. O investimento tem relação com aquisição de um ativo, cujo objeto contratado não faz parte das atividades já custeadas e que no futuro deverá ser apropriado ao patrimônio do governo. O serviço contratado não consiste na produção de ativos materiais, portanto não serão incorporados ao patrimônio governamental de maneira direta.
 
Enquanto o segundo aspecto tem relação com a disponibilização de um software de um ente público para outro, que seria até certo ponto uma etapa aparentemente simples, o terceiro aspecto do ciclo adiciona um ingrediente importante, pois temos um bem público com a agregação de uma prestação de serviço privado, onde por meio contratual o resultado do serviço será agregado de volta para o próprio ambiente público, amparado no Portal SPB. Isto significa, como explicado no primeiro aspecto, que após a entrega da nova versão do bem público software, toda a sociedade acabou sendo beneficiada pelo resultado do serviço contratado.
 
Outros dois fatos relevantes precisam ficar registrados nessa contratação realizada pela Procuradoria. Primeiro que a modalidade escolhida foi o pregão eletrônico. Uma modalidade que comprovadamente tem gerado grandes economias para a administração pública[4]. O segundo, e que chamou por demais a atenção, foi a participação de sete empresas no certame, o que demonstra um nível de competitividade para a prestação desse tipo de serviço. Um cenário contrário ao imaginado pelos opositores do modelo do software público, que defendiam a incapacidade da iniciativa gerar competitividade.
 
Somente os dois fatores acima poderiam abrir uma série de análises a respeito do modelo do software público, pois duas boas práticas são empregadas de forma contundente: a modalidade do pregão eletrônico e a multiplicidade de fornecedores. Mas aqui vamos tratá-los como efeitos colaterais, pois o foco do artigo é o ciclo virtuoso.
 
O ciclo entra em sua fase final quando o Ministério do Planejamento em mecanismo legal de Adesão à Ata de Registro de Preço[5], resolve contratar alguns itens de serviço para o consumo interno e para realização de um inventário de maior alcance para a própria Administração. Caracteriza-se então um quarto aspecto do ciclo, pois da relação inicial entre o contratante (PGFN) e a contratada (empresa privada), surge uma operação em rede, notadamente presente em práticas de produção colaborativa, onde um terceiro ente é beneficiado para usar a nova versão de uma solução compartilhada.
 
Um quinto aspecto merece um destaque especial em decorrência do modelo de gestão do ecossistema da comunidade CACIC. Desde o princípio, a PGFN e o Ministério do Planejamento, realizaram reuniões para definir conjuntamente os requisitos que são contratados. Isto significa que os recursos foram alocados de forma mais racional, gerando economia para os cofres públicos e, em segundo lugar, que ao mesmo tempo acelerou-se processo de desenvolvimento, visto que se tratavam de serviços incrementais definidos de forma conjunta.
 
Importante reforçar que os modelos abertos não obrigam os usuários a devolverem as evoluções desenvolvidas. Ou seja, o fato da PGFN e do Ministério do Planejamento-MP usarem o CACIC e contratarem serviços de desenvolvimento, não obriga que o resultado do esforço contratual seja compartilhado. Isto significa que os envolvidos precisam acreditar na lógica do ciclo virtuoso para garantir que o mecanismo de contratação e de gestão conjunta gere resultados integralmente para toda a comunidade. Trata-se de uma acumulação importante de perfis, pois a instituição passa a ser, ao mesmo tempo, usuária do sistema e indutora do processo de produção colaborativa.
 
Ao verificarmos o percurso do ciclo virtuoso, nota-se que todos os envolvidos no processo ganham de alguma forma. Tal fenômeno pode ser verificado no resumo do ciclo: um software desenvolvido por uma empresa pública (Dataprev), teve como beneficiário um órgão da Administração Direta (PGFN), que buscou serviços prestados no mercado (edital público), cujo resultado favoreceu ao órgão contratante (PGFN), em paralelo ao ofertante (Dataprev) e ao terceiro interessado (Ministério do Planejamento-MP). Em seguida os dois órgãos públicos após a ação conjugada, passaram a beneficiar toda sociedade (comunidade CACIC).
 
No que tange ao aspecto econômico o recurso público (PGFN e MP) foi empregado em beneficío do próprio setor público (Dataprev), gerou oportunidade de negócios no mercado (empresa privada contratada) e o resultado do desenvolvimento foi destinado para toda sociedade (comunidade CACIC), inclusive para o próprio prestador de serviço que poderia não fazer parte ainda da comunidade.
 
Ao final, ainda surge um sexto aspectoa iniciativa do setor público em momento algum impediu que outras oportunidades de negócio fossem geradas para o mercado. A questão central fica no regime de apropriação do resultado que é público e não privado, onde a própria cadeia de apropriação não impede que novas oportunidades de negócio apareçam, pois o foco não é o produto, mas o serviço. O importante é que o próximo contrato vai considerar a evolução realizada no contrato anterior. Neste caso, fica bem evidente a caracterização de um ciclo virtuoso.
 
Observa-se que os seis aspectos aqui relatados ao serem tratados de forma isolada aparentam não ter novidade alguma. Entretanto, ao serem mencionados de forma conjugada e interligada, demonstram claramente a existência de um ciclo virtuoso, que gera uma relação comumente denomidada ganha-ganha. Um componente importante dessa relação é que esse “ganho” final ultrapassa os envolvidos diretamente no processo, pois se trata de um bem intangível desenvolvido no modo de produção colaborativo.
 
Assim, o software público fecha o seu primeiro ciclo virtuoso e coloca em prática um conceito abordado pelo teórico Alvin Toffler e sua esposa Heidi, no livro Riqueza Revolucionária, onde os dois abordam que o Sistema de Riqueza do futuro é o resultado dos aspectos monetários - configurado pela contratação de prestação de serviços do CACIC junto ao mercado - e dos aspectos intangíveis – o resultado da produção da nova versão do sistema foi compartilhada com todos os produtores e usuários da cadeia.
 
Notas:
 
[1] Portal SPB: disponibilizado nova versão do Cacic
(último acesso 02/04/2015)
 
[2] Livro Riqueza Revolucionária – o significado da riqueza no futuro, Alvin e Heidi Toffler, 2007, Editora Futura.
 
[3] A materialização do conceito de Software Público: a iniciativa do CACIC, Revista Informática Pública.
(último acesso 02/04/2015)
 
[4] Uso do Pregão Eletrônico gera economia de R$ 9,1 bi em 2013, 10 de fevereiro de 2014, Portal do Ministério do Planejamento.
(último acesso 02/04/2015)
 
[5] Portal SPB: Ata de registro de preços, contratação da PGFN
(último acesso 02/04/2015)
 
Fonte:IDGNOW